ENTRE A MORTE E A RESSURREIÇÃO - Alma e imortalidade da alma
Para Ratzinger (Papa Bento XVI) é despropositado falar em ressurreição na morte, pois que isso implicaria algo impossível: a entrada do homem na eternidade de Deus, em que passado e futuro estão atualmente presentes no único e eterno presente divino. O homem passa, sim, a outra dimensão ao deixar o bíos, mas não entra na eternidade pura. Ratzinger usou a expressão “tempo da memória” para falar dessa realidade nova. Isso, então, quer dizer que o homem está a espera da consumação de todas as coisas em Deus, está a espera da plenitude do Corpo de Cristo.
Daí a verdade profunda da insistência das Sagradas Escrituras na ressurreição no “último dia”, no “fim dos tempos”. Ademais, dizer que o homem entra na eternidade por ocasião da morte implicaria uma desvalorização da história que está acontecendo e ainda não terminou. Ora, qual o elemento que garante a permanência da identidade do homem que deixou esta vida, passou ao puro “tempo da memória” e aguarda ainda a consumação de todos e de tudo, inclusive da matéria, em Deus? Esse elemento, a tradição cristã denominou-o alma.
Segundo Ratzinger, é evidente que no homem, ser unitário em virtude da criação, distinguem-se o elemento permanente e o transitório. O homem é uno, mas não um bloco monolítico. São palavras do teólogo que se tornou Papa:
“A matéria como tal não pode ser o fator de permanência no homem: inclusive durante a vida terrena se encontra em contínua mutação. Nesse sentido é inegável uma dualidade que distingue o constante e o variável, dualidade exigida simplesmente pela lógica do assunto. Por esta razão resulta irrenunciável a distinção entre corpo e alma”.
Segundo Ratzinger, a concepção tradicional que distingue no homem o elemento material e o elemento espiritual é profundamente lógica e, tal como encontrou sua expressão em Tomás de Aquino e no Concílio de Vienne (“anima forma corporis”), não cai em nenhum dualismo. Distinguir não significa separar. O homem segue sendo uma realidade unitária. Corpo e alma aqui não são duas substâncias completas em si mesmas, mas dois princípios de que resulta o homem enquanto tal. Entre o monismo inadmissível e o dualismo não-cristão, há a dualidade.
Muito se tem invocado a Sagrada Escritura para desbancar a visão que se fixou na tradição cristã. A Escritura não falaria de distinção de corpo e alma, mas apenas do homem como ser uno e indivisível, ainda que sob diversos aspectos: enquanto ser frágil, a Escritura o chama de basar-sarx; enquanto animado pelo sopro vital, nephesh-psiqué; enquanto capaz de relacionamento com Deus, o homem é chamado de ruah-pneuma.
É verdade, a Escritura não trata do homem senão como um ser uno como exige a doutrina da criação (Deus criou o homem inteiro, sem justaposição), e, no geral, não se preocupa em fazer a distinção que a reflexão teológica depois tratou de fazer. A Escritura não está preocupada em apresentar uma reflexão sistemática sobre o homem. Em vão procuraríamos aí uma antropologia sistematizada.
Entretanto, pode-se seguramente afirmar que a antropologia que distingue no homem corpo e alma resulta de uma análise que contempla o todo da Escritura e, de modo especial, o elemento determinante do Novo Testamento, a cristologia. Está na linha da Escritura afirmar que não há interrupção entre a morte do homem e a consumação do mundo. O elemento que permanece e que garante a identidade de quem deixou esta vida e vai ressuscitar não pode ser senão o seu núcleo pessoal, que a tradição chama de alma.
Deve-se dar conta, em primeiro lugar, que a Igreja primitiva, Paulo e mesmo Jesus moviam-se no terreno da tradição judaica. Embora, como dissemos, o homem seja visto pela Escritura numa perspectiva, o que lhe ocorre depois da morte é curioso. Nos textos mais antigos, a Escritura afirma que, enquanto o corpo é levado à sepultura, as sombras -refaim- do falecido juntam-se à sua parentela no sheol. Às sombras não compete uma vida consciente, mas uma existência espectral e despersonalizada.
Mas, com o aparecimento da esperança de que Deus poderia tirar essa existência do sheol, esperança testemunhada já em Jó e em alguns Salmos, o judaísmo intertestamentário passou a distinguir no sheol a morada dos justos de um lado e dos pecadores de outro, como se constata no livro etiópico de Henoc, ou como, de modo mais desenvolvido, em 4Esd, que já atribui prêmio e castigo às almas dos defuntos que continuam vivendo antes da ressurreição esperada.
Assim, no judaísmo intertestamentário, por ocasião da morte do homem, distingue-se o seu elemento permanente, o seu “eu” que logo após a morte é já merecedor de prêmio ou castigo, do elemento transitório, que vai para o sepulcro. Repercussões desse modo de pensar se fazem presentes no Novo Testamento, como em Mt 10,28: “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na Geena”, ou como em Ap 6,9, que fala das almas dos justos sob o altar, ou ainda em Lc 16,23, que coloca de um lado o seio de Abraão, e de outro o lugar de tormentos.
Mas o Novo Testamento desenvolveu ainda mais as concepções do judaísmo de então, afirmando a comunhão com o Senhor logo após a morte e antes do fim do mundo. Em Paulo, vemos claramente isso quando, por exemplo, diz aos Filipenses que gostaria de desprender-se para estar com Cristo. Mas o apóstolo também reconhece que, de acordo com 1Ts 4, 17, a ressurreição como tal só se dará no último dia. Em João, a comunhão com o Senhor se dá já nesta vida, o que garante sua permanência mesmo após a morte.
Apesar de a comunhão com Cristo ser real e duradoura, João não exclui a ressurreição do dia derradeiro, que levaria esta comunhão à plenitude. Alguns exegetas reconhecem a insistência de João na ressurreição do último dia como reação a concepções gnosticizantes e por demais espiritualistas. Aliás, João, com sua insistência sobre a teologia da carne-sarx, desenvolve uma polêmica contra o gnosticismo então nascente. O episódio do bom ladrão registrado por Lucas 23,43 mostra que os elementos herdados do judaísmo foram interpretados cristologicamente. A recompensa que os justos aguardavam no sheol realiza-se em Cristo; o paraíso é ele; ele é a água viva; é a vida em plenitude.
Ratzinger diz que “as idéias que se desenvolveram na antiga Igreja sobre a sobrevivência do homem entre a morte e a ressurreição se apóiam nas tradições que se davam no judaísmo sobre a existência do homem no sheol e que se transmitiram no novo testamento, corrigidas cristologicamente”.
A determinação cristológica assegurou a permanência do sujeito da comunhão, isto é, o “eu” do justo permanece em comunhão com Cristo mesmo depois da morte, e, uma vez que, segundo a cristologia da ascensão, Cristo subiu à direita do Pai, o homem, logo após a morte e antes da ressurreição final, já se encontra em situações provisoriamente definitivas.
É porque Cristo, Cabeça do Corpo, subiu aos céus que os membros também podem fazê-lo, ainda que a história não tenha sido consumada. Esta compreensão aparece claramente na alta Idade Média com a bula Benedictus Deus de Bento XII, que define solenemente que a alma do justo, plenamente purificada, imediatamente depois da morte, tem a felicidade plena da visão intuitiva de Deus. A ressurreição do derradeiro dia será o efeito dessa visão na matéria, matéria que, enquanto criatura de Deus, na linguagem de São Paulo, aguarda com gemidos e dores de parto a libertação total.
De tudo que ficou dito, percebe-se que para Ratzinger a antropologia que afirma uma dualidade no homem não pode ser classificada como simples intrusão grega. É, antes do mais, o resultado de um esforço para sistematizar os dados que a fé apostólica transmitiu à Igreja, esforço que se valeu, sem dúvida, de elementos da cultura grega, sem, contudo, aceitá-los sem qualquer modificação. Não se pode encontrar tal antropologia em nenhum dos pensadores gregos. Nem Platão nem Aristóteles chegaram a tal visão do homem.
“Também resulta claro”, diz Ratzinger, “que a fé cristã apresentava exigências à antropologia, exigências que não poderiam ser satisfeitas por nenhuma das antropologias existentes, mas podiam e deviam ser úteis os conceitos destas, supondo-se as mudanças necessárias. Porque era necessário desenvolver uma antropologia que, por uma parte, reconheça o homem como criatura de Deus, criado e querido por Deus em sua totalidade. Por outra parte, neste homem deve-se distinguir entre o passageiro e o que é permanente. Tal distinção teria de se realizar, por sua vez, de tal modo que se mantivesse aberta a aproximação à unidade definitiva do homem e da criação”.
Por fim, não poderíamos deixar de registrar uma contribuição muito importante de Ratzinger sobre o conceito de imortalidade da alma. Franz-Josef Nocke, no Manual de Dogmática dirigido por Theodor Schneider, diz que Ratzinger reabilitou o conceito de imortalidade da alma, mas deslocou a sua chave de compreensão: a imortalidade da alma deve ser vista, antes de tudo, pelo seu caráter relacional-dialógico com Deus. É porque Deus criou o homem como seu parceiro de diálogo que o homem é imortal. O estar na memória de Deus é que faz o ser humano existir para sempre. Essa abertura para Deus pertence à essência mesma do homem.
E aquilo que permite tal abertura chamamos exatamente de alma, que, como forma corporis, de um lado pertence a este mundo material, mas, de outro, porque tende a Deus, faz com que o mundo vá além de si mesmo. Ter alma e ser parceiro de diálogo com Deus significam o mesmo. A alma, então, não é imortal por si mesma, hermeticamente isolada; é imortal em sua essência, sim, mas porque aberta ao relacionamento com Deus.
“A alma nada mais é senão esta capacidade de relações que o homem pode ter com a verdade, com o amor eterno”. Platão, de algum modo, intuiu isto ao dizer que o que faz o homem imortal é sua relação com a verdade imutável; entretanto, no Cristianismo, essa Verdade, que é Amor, não é algo, mas Alguém. Desse modo, a dualidade fundamental para Ratzinger não é a dualidade corpo-alma, mas a dualidade Criador-criatura.